Friday, August 12, 2011

A indústria farmacêutica e o uso de cobaias humanas


Cabeça de Turco é um livro fascinante, escrito pelo jornalista alemão Günter Wallraff, na década de 80, quando ele disfarçou-se de turco para viver na Alemanha e sentir na própria pele como era ser discriminado e tratado como escória - "foi necessário usar um disfarce para desmascarar a sociedade; foi necessário mentir e fingir para descobrir a verdade. Continuo, porém, sem saber como um imigrante consegue engolir as humilhações, as hostilidades e o ódio cotidianos. Mas agora sei o que ele tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo humano neste país.. Reflexos do apartheid projetam-se aqui entre nós - em nossa democracia".

Ele foi obrigado a trabalhar nos piores empregos disponíveis, preferencialmente, para os turcos: faxineiro do McDonad's, limpando privadas, operário em siderúrgicas insalubres, engolindo pó, inalando fumaça e absorvendo metais pesados, serviços de limpeza e reparação nas áreas expostas à radiação numa usina nuclear e cobaia humana, testando medicamentos para a indústria farmacêutica!
Como na postagem anterior falei a respeito de testes de vacinas em seres humanos, que causam sequelas e até a morte, o livro veio automaticamente à minha cabeça, pois Günther narra sua experiência como cobaia detalhadamente e o quanto essa prática era procurada pelos necessitados economicamente. O desprezo por essas criaturas era tão grande que, grafitado num muro em Disburg/Wedau, lia-se: "Parem de usar animais como cobaias - usem os turcos!"

Recomendo que  leiam a obra -  uma excepcional aquisição de conhecimento verdadeiro. O livro vai muito além da questão dos experimentos químicos com seres humanos, mas é esse o enfoque da postagem, logo, reproduzo algumas passagens sobre a experiência de Günther como cobaia da indústria farmacêutica (em itálico é o texto dele, ipsis litteris):

Conta-me que requisitam muitos estrangeiros - turcos, indonésios, refugiados políticos sul-americanos, paquistaneses - para esse trabalho especial que consiste em servir de cobaia para a indústria farmacêutica. (...) Osman me dá o endereço do Instituo LAB em New Ulm. (...)
Enviam-me para um check-up de rotina. Colhem amostras de sangue, examinam a urina, fazem eletrocardiogramas, tiram minhas medidas, pesam-me. Um médico confere os resultados. (...) Sou aprovado. Estou pronto para o uso. Tomarei medicamentos em forma de pílulas e injeções que, com certeza, me transformarão numa pessoa doente. Obrigam-me a assinar uma declaração de que consinto em submeter-me aos testes. Entregam-me um boletim informativo de cinco páginas escrito em alemão: "Boletim informativo sobre os testes de estudo comparado farmacodinâmico de quatro preparados diferentes combinados com substâncias que contém fenobarbital e fenitoína. (...) Segundo o boletim informativo,"tais medicamentos não são para uma doença comum, mas para epilepsia e convulsões febris nas crianças".
Quase todos os cientistas que não dependem da indústria farmacêutica criticam com violência o uso de semelhantes preparados. A combinação de dois agentes impede uma dosagem adaptada às necessidades individuais dos pacientes. No entanto, médicos inescrupulosos mostram boa vontade para com esses preparados. Poderão ocupar-se menos com seus pacientes. A substância composta fenobarbital pertence à classe dos barbitúricos, drogas que logo criam dependência. Exatamente porque seu uso é perigoso, centenas de remédios contendo barbitúricos foram proibidos nos últimos anos. Trata-se, pois, de medicamentos bastante conhecidos que, na verdade, deveriam ser retirados de circulação. Mas ninguém explica por que ainda devem ser testados.


O teste era programado para onze semanas, os muitos efeitos colaterais informados e as cobaias não podiam deixar o local, pois as coletas de sangue eram feitas de hora em hora.
"Detenção voluntária". São vigiados para garantir que tomem os remédios."A primeira coisa que sinto é que meu campo visual se reduz. Tento olhar para o pátio, mas o sol me ofusca, dói-me a vista. Deito-me na cama, sonolento e apático. De hora em hora vou como um sonâmbulo para a coleta de sangue. Os outros também estão pálidos e abatidos. (...) No dia seguinte encontro-me num estado ainda mais lastimável. Esses testes são absurdos, pois já se conhecem todos os efeitos colaterais. Já os sentimos: vertigem violenta, fortes dores de cabeça e distúrbios de percepção, além de estupor permanente. A gengiva sangra muito.
Não contam nada aos funcionários, com medo de não ser aceitos em outros testes.
Depois do teste, todos os participantes ficaram meio "abobalhados". Alguns caíam sem conseguir ficar em pé e precisavam ser carregados. No entanto, no boletim informativo, onde lia-se "efeitos colaterais" havia uma cruz assinalando "não"...

Depois dessa "primeira série" - isto é, depois de 24 horas - decidi interromper o teste. Eu deveria ficar "aquartelado" ainda mais tres vezes nas onze semanas seguintes. Com os efeitos colaterais agravando-se. (...) Abandonando os testes antes do término, não recebo um centavo.
Para Eberhard Greiser, professor da Universidade de Bremen, "aproximadamente dois terços deses estudos farmacológicos são desnecessários. São estudos que têm propósitos comerciais e não há nenhuma relação entre sua utilização e as despesas que acarretam".
Existem "cobaias profissionais' que testam medicamentos para empresas diferentes, ao mesmo tempo, o que já acarretou mortes pelas quais ninguém quis responsabilizar-se. Uma cobaia do LAB, furtivamente me dá o endereço de outro laboratório, o Bio-Design, em Freiburg. (...) Trata-se de uma substância chamada mesperinon, antagonista do aldosteron. É um mineral corticóide que influi no sistema hormonal. Já está sendo comercializado um produto desse tipo pertencente ao grupo dos espironolactons. Sabe-se que o uso prolongado dessa substância provoca uma espécie de... digamos... efeminação, ou seja, um desenvolvimento de seios nos homens. Mas isso não acontece com um uso terapêutico de duas semanas. - E isso é seguro? - pergunto. - É o que esperamos. Mas esse é exatamente o objetivo do teste. Nunca se tem certeza com essas coisas - responde a moça.
- E se acontece, depois some?
- Claro - diz ela, tranquilizando-me. - Tudo volta para o seu devido lugar.
É evidente que está mentindo. Uma ginecomastia - nome correto na linguagem médica para a formação de seios nos homens - só é removida por cirurgia Pelo menos essa é a opinião unânime dos especialistas. (...) Felizmente posso me reservar o direito de recusar tal proposta tentadora e a soma oferecida pela Bio-Design. Outros, contudo, não podem fazer o mesmo. Firmas como a LAB e a Bio-Design lucram com a crise econômica, que obriga mais e mais pessoas a procurá-las. (...) Pude sentir na pele os efeitos colaterais que, segundo me diziam, aparecem muito "raramente". Ao regressar dessa viagem pelos laboratórios farmacêuticos, minha gengiva inferior começou a inchar e supurar. O dentista diagnosticou "gengivite" e, presumindo corretamente, perguntou-me: "O senhor tem tomado algum remédio à base de fenitoína?" Respondi que sim, e ele, relacionando o efeito colateral com minha suposta doença, perguntou de imediato: "O senhor é apilético?"


Cabeça de Turco - uma viagem nos porões da sociedade alemã
Günther Wallraff - Editora Globo, 1985

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